segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

ENTREVISTA - LUIZ FELIPE PONDÉ - ATEUS


A VOLTA DA ASTROLOGIA. Texto de Olavo de Carvalho


A VOLTA DA ASTROLOGIA.
Texto de Olavo de Carvalho
Ainda hoje, quando falamos em astrólogos, muita gente pensa em homens sinistros de chapéus pontudos, a contemplar o céu de suas altas torres e a interpretá-lo segundo seus delírios. E, no entanto, eles já estão penetrando nos gabinetes e laboratórios da ciência, misturando-se entre químicos, biólogos, meteorologistas, médicos e financistas. . .
No século passado, Carl Gustav Jung anunciou a volta da astrologia às cátedras universitárias. Na época, isso era verdade apenas em algumas raras escolas de psicologia na Suíça, onde pioneiros corajosos, como o próprio Jung, incentivavam ou promoviam cursos semi-oficiais de astrologia, à noite, para os futuros clínicos, sob os olhos complacentes dos velhos reitores.
Hoje, a Universidade de Stanford, a Escola Técnica Superior de Zurique e mais sete universidades em todo o mundo promovem estudos regulares sobre a astrologia. Na Universidade de Paris (e a França é o pais mais conservador face a astrologia), o professor Robert Jaulin, no curso de etnologia, concede "créditos" suplementares aos alunos que frequentam aulas de astrologia, e outro etnólogo, Jacques Halbronn, fundos o Movimento Astrológico Universitario, que reúne centenas de estudantes e professores da mesma universidade, e promoveu o último Congresso de Astrologia, em Paris. Desse congresso participaram figuras do porte de um Eric Weil, professor de filosofia em Louvain e pensador de renome universal.
Que é que houve? Mudou a astrologia ou a opinião maciça dos intelectuais está realizando um 'mea culpa' coletivo perante a arte de Ptolomeu e Kepler, que ainda há algumas décadas era considerada apenas uma diversão de excêntricos amalucados ou prática excusa para iludir a boa fé popular? De onde proveio essa revolução, transformando o que ontem era engodo e ilusão no que hoje é pesquisa profunda e reflexão grave?

Em 1666, expulsa das cátedras universitárias
Para começo de conversa, quem expulsou a astrologia das cátedras universitárias não foi o avanço da ciência, como normalmente se supõe, mas uma interpretação apressada das descobertas de Copérnico. A expulsão foi decretada em 1666, por Colbert, ministro de Luís XIV, com a alegação de que a astrologia não tinha fundamento cientifico.
Na realidade, a ciência da época não tinha condições mínimas para averiguar isso realmente, e a primeira pesquisa estatística sobre o assunto foi feita só trezentos anos depois. O que Colbert supôs foi que, como os horóscopos eram desenhados geocenteicamente - isto é, com a Terra no meio, e o Sol, a Lua, os signos e os Planetas em torno - não podiam funcionar, já que Copérnico havia demonstrado que o que estava no centro era o Sol e não a Terra.
Colbert simplesmente não percebeu que o horóscopo não era propriamente geocêntrico mas antropocéntrico, isto é, que representava o universo centralizado não na Terra enquanto realidade física, mas no Homem, no indivíduo. O horóscopo não era um mapa físico do universo (embora fosse também isto), mas um mapa do seu significado, um mapa do sentido do universo, tal como este se apresentava para determinado indivíduo na hora e no local em que este nascia. Para esses fins, o centro do universo, o centro da experiência individual, continuava a ser obviamente a Terra (excetuando-se a hipótese de o consulente ter nascido em Marte ou na Estrela Vega), e o próprio Kepler, que calculou as órbitas heliocêntricas dos planetas, continuou a desenhar horóscopos geocentricamente até o fim dos seus dias.
Enquanto o mapa astronômico era inteiramente objetivo e material, o mapa astrológico era ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, tal como as mandalas tibetanas, que representam ao mesmo tempo o círculo do universo exterior e o interior do homem. Esta sutileza escapou a Colbert. As universidades alemãs e suíças, mais sensatas, preferiram deixar abertas suas cátedras de astrologia, embora sem ocupantes, e foi esta brecha que permitiu a Jung anunciar uma volta triunfal.

Em 1945, reabilitada pelas provas estatísticas
Essa volta não seria nada triunfal, entretanto, se não se houvesse descoberto, pouco depois, provas eloqúentes de que a relação astroHomem não é uma pura fantasia.
Essa descoberta veio quando, em 1950, o pesquisador francês Michel Gauquelin resolveu tirar a limpo, pela estatística (sua especialidade acadêmica), a questão das "influências astrais". Desde o começo do século, o grande astrólogo Paul Choisnard pedia aos estatísticos que fizessem isso. Mas era muito difícil, porque um único mapa astrológico (feito para a hora, data e local de nascimento de um indivlduo) tem mais de mil fatores a serem levados em ponta.
Por volta de 1945, outro astrólogo, Léon Lasson, conseguiu finalmente formular um bom método de aplicar a estatística à astrologia. Gauquelin aperfeiçoou esse método e o empregou numa pesquisa que abrangeu cinco mil mapas astrológicos.
A pesquisa submeteu à prova uma única doutrina astrológica, porém antiga e fundamental: a de que não só determinados planetas estão associados a determinadas profissões (Júpiter à política e ao teatro, Saturno à ciência, Marte aos esportes e artes militares, Lua à literatura), como também tais planetas exercerão uma influência mais intensa, se no instante do nascimento do indivíduo estiverem colocados em determinados pontos privilegiados do céu. Esses pontos são, segundo a doutrina, o ascendente, que é a parte mais oriental da linha do horizonte, e o meio-do-céu, que é o ponto mais alto do Zodíaco (faixa dos signos) em relação a determinado lugar da Terra.
Se a teoria estivesse certa, pensou Gauquelin, determinados planetas estariam com maior frequência no ascendente e no meio-do-céu no nascimento das pessoas cujas profissões estivessem relacionadas com esses planetas, do que no nascimento das outras pessoas. Saturno estaria com mais freqüência no ascendente e meio-do-céu dos cientistas, Marte no dos militares, Júpiter no dos políticos e atores, etc. Inversamente, seria raro um Saturno no ascendente ou meio-do-céu dos esportistas ou atores, e assim por diante. Mais ainda: seria preciso que essa freqüência ultrapassasse a média do acaso (no jargão dos estatísticos: feeqüência teórica) de maneira significativa, para se poder acreditar que o fenômeno fosse algo mais do que mera coincidência.
Do ponto de vista cientifico, a hipótese a ser testada era um absurdo completo, mas as estatisticas foram mais favoráveis ao absurdo do que ao ponto de vista científico. Com uma freqüência que só seria possível atribuir ao acaso com uma possibilidade de 1 contra 10 milhões (isso mesmo), os planetas estavam lá onde os astrólogos diziam que estariam: Júpiter no ascendente e meio-do-céu dos atores e políticos, Saturno no dos cientistas, Marte no dos esportistas e militares, Lua no dos escritores. Inversamente, a Lua não estava no ascendente nem no meio-do-céu de quem não era escritor, Marte no de quem não era militar, etc.
Embora tudo isso parecesse uma trama diabólica dos astros para confundir o bom senso dos pobres cientistas, Gauquelin, com exemplar honestidade intelectual, publicou os resultados da pesquisa, que se tornaram imediatamente motivo de escândalo e protestos gerais. O diretor do Instituto Nacional de Estatística da França, Jean Porte, convidado pelos adversários de Gauquelin a desmascarar a farsa toda, refez os cálculos e informou depois de algum tempo: lamentavelmente, os cálculos estavam certos. Ainda assim, Gauquelin refez a pesquisa, desta vez reunindo nada menos que 25.000 mapas, na França, na Bélgica, na Holanda, na Itália e na Alemanha, e chegou novamente aos mesmos resultados. Novamente Jean Porte refez as contas, e novamente elas estavam impecáveis.
Recentemente, nos Estados Unidos, a revista The Humanist publicou um abaixo-assinado de 186 cientistas contra a astrologia. Em resposta, vieram centenas de cartas a favor, e The Humanist resolveu arbitrar a questão promovendo uma pesquisa igual à de Gauquelin, com amostragem menor mas controle estatístico maior. Os resultados, pela terceira vez, foram os mesmos. (No Brasil, durante um debate na TV, o abaixo-assinado de The Humanist foi exibido como o sumo argumento antiastrológico por um psiquiatra, que obviamente não contou a continuação da história . . .)

Agora, resta saber qual e natureza do fenómeno
Todos os debates que houveram serviram para mostrar que a astrologia é um assunto infinitamente mais completo do que seus opositores jamais imaginaram.
Exemplo. Quando não pôde mais negar os resultados da pesquisa, o mais feroz adversário francês da astrologia, o astrônomo Paul Couderc, então chefe do Observatório de Paris, julgou ter descoberto um argumento fulminante ao declarar que uma correlação era uma coisa, e um mecanismo de causa e efeito, outra; que a pesquisa Gauquelin havia estabelecido uma correlação entre os astros e o Homem, mas não havia de modo algum provado que os astros causam as ações humanas, "como pretendem os astrólogos".
Os astrólogos limitaram-se a exibir os textos clássicos da sua arte, desde a Tábua de Esmeralda de Hermes Trimegisto (milênios anterior a Cristo) e as Enéadas de Plotino (século 39) até os tratados de Paracelso (século 15), Kepler (século 16) e Robert Fludd (século 17), em que por toda parte se explica a relação entre os astros e os homens como um processo de semelhança, de analogia, de simpatia, de correlação, de sincronismo, e nunca de causa e efeito.
E completaram: nenhum astrólogo jamais disse que os astros causam as ações humanas, pela simples razão de que o principio de causa e efeito, tão importante para o cientista materialista, é, para os astrólogos, um principio menor e secundário. O princípio maior é a lei de analogia, mediante a qual o grande e o pequeno, o macrocosmo e o microcosmo, a matéria e a consciência, têm uma estrutura e uma dinâmica semelhante, já que são apenas faces diversas do mesmo fenômeno.
O pobre Couderc jamais imaginou que estivesse mexendo num vespeiro tão grande. Desde essa época, praticamente cessou a polêmica rasteira tipo pró-e-contra a astrologia, e desencadeou-se um debate teórico de alto nível sobre a natureza do fenômeno revelado pela pesquisa Gauquelin. Se não se tratava de uma relação de causa e efeito, que relação era então? Um sincronismo, como pretendia Jung? Ou, como afirmava o próprio Gauquelin, tenaz estudioso dos biorritmos, existe em cada ser vivo um "relógio cósmico" que o torna receptivo a todos os ritmos do universo ao seu redor? Qual era precisamente o sentido com que os antigos falavam em "analogia"? Não seria a analogia um instrumento mental utilizável pela ciência, para a análise de fenômenos demasiado grandes e complexos, como a dinâmica da vida social e política, os grandes sistemas ecológicos, a economia das grandes nações? Não teriam os antigos astrólogos tido, milênios atrás, a intuição de um método cientifico para a abordagem de grandes problemas? Não teriam feito, como disse Lucien Malavard, "ciências humanas avant Ia lettre"? Esse é hoje o grande debate astrológico, que envolve algumas das questões mais contundentes e vivas da cultura contemporânea e ocupa alguns dos melhores cérebros da atualidade.

Os astros na religião, na biologia, nas finanças . . .
Paralelamente, prosseguiram as pesquisas. No campo da história, foi possível obter uma vasta coleção de evidências em favor da tese da astróloga Marcelle Senard (e de todos os astrólogos tradicionalistas), segundo a qual o Zodíaco é uma espécie de chave universal de todas as religiões.
Aplicando um método estrutural a praticamente todas as religiões e mitologias do mundo, o historiador Jean-Charles Pichou descobriu que existem apenas doze mitos básicos em todos os povos e lugares, e que esses mitos se sucedem segundo uma ordem mais ou menos regular.
Essas estruturas básicas são nada menos que os doze signos do Zodíaco. O trabalho de Pichou é demasiado revolucionário e demasiado volumoso para poder ser endossado ou contestado em bloco, mas certamente permanecerá como um clássico na historiografia das religiões.
Os biólogos também descobriram algumas coisas agradáveis aos astrólogos. Primeiro, simples correlações entre ciclos planetários e o metabolismo de animais e plantas estabelecidas por Frank A. Brown, da Northwestern University, EUA (o que não tem valor astrológico direto, mas constitui indicio favorável ao tipo de interdependência postulado pelos astrólogos, e que até 40 anos atrás era considerado mera ficção). Depois, um vendaval de confirmações da antiga correlação - esta, puramente astrológica - entre a lua e a fertilidade. Um pesquisador tcheco, Eugen Jorias, médico e astrólogo, chegou a estabelecer um processo astrológico de previsão de períodos de fertilidade das mulheres pela posição da Lua no instante do seu nascimento. Uma pesquisa feita pelo governo tcheco encontrou 94 por cento de acerto no método Jonas.
Em seguida, o neurologista Leonard Ravitz, da Duke University, descobriu que mudanças marcantes de potencial elétrico emitido pelo corpo humano ocorriam segundo as fases da Lua e, mais ainda (coerente com a doutrina astrológica de que a Lua está relacionada com as doenças mentais, donde a palavra lunático), que nos pacientes psicóticos tais mudanças eram nitidamente mais agudas do que nas pessoas mentalmente sadias.
Mais recentemente o economista norte-americano L. Peter Cogan procurou averiguar em que medida os ciclos de pessimismo e otimismo dos investidores, com reflexos nítidos na bolsa de valores, coincidiam com posições planetárias. Abarcando o período de 1873 a 1966, seu estudo concluiu que tais ciclos respondiam simetricamente às posições do Sol com relação a Saturno e Urano (planetas que, segundo a astrologia, regem o capitalismo). Os ciclos de pessimismo correspondiam às relações de 180 e 90 graus (ângulos "maléficos", segundo a tradição astrológica).

"Bem-aventurado aquele que pode ler no céu estrelado"
Ao lado disso, o médico holandês Nicholas Kollerstrom, pesquisador do Medical Research Hospital de Londres, refazendo uma experiência do filósofo Rudolf Steiner, de
monstrou que certas reações químicas com tons metálicos têm seu resultado alterado quando realizadas sob determinadas conjunções planetárias. Kollerstrom observa que os planetas que tiveram o poder de alterar essas reações foram precisamente aqueles que, segundo a tradição astrológica, estão relacionados com os metais que, em solução, ele usou na experiência. Saturno, cujo metal tradicional é o chumbo, alterava as reações com sulfato de chumbo, e ficava indiferente às demais; a Lua, cujo metal é a prata, só mexia com o nitrato de prata; Vênus só alterava o sulfato de cobre, já que seu metal é o cobre; e Marte, que rege o ferro, alterava as reações de sulfato de ferro.
Paralelamente, médicos e biólogos de todo o mundo vêm estudando, até sob o patrocínio da Unesco, as relações entre os ciclos planetários e os ritmos biológicos e emocionais humanos, sob o nome de biometeorologia ou de biopsicometeorologia.
Diante da convergência de tantos caminhos em direção a um fenômeno que há algumas décadas era negado em bloco, os entusiastas da conexão entre homens e astros exultam de alegrias e esperanças. Mas o que importa não é isso, e sim estudar esse fenômeno, aprender a contempla-lo e a compreendê-lo. Épocas inteiras o ignoraram. Kant e sua época viam acima de si o céu estrelado e dentro de si a lei moral. Viam um universo dividido, onde a necessidade interior do homem, a lei moral, não tinha nenhuma relação com a realidade objetiva. Até muito recentemente foi assim.
Assim no inicio do século XX, entre os horrores da Grande Guerra, o pensador materialista Georg Lukacs dizia: "Bem-aventuradas as épocas que podem ter no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhe estão abertos! Bem-aventuradas as épocas cujos caminhos são iluminados pela luz das estrelas! Para elas, tudo é novo, e entretanto familiar! Tudo é aventura, e tudo lhe pertence, pois o fogo que arde em suas almas é da mesma natureza das estrelas". Ao redescobrir a pista das relações entre o cosmo e o Homem, nossa época recomeça a ver, depois de uma longa escuridão, a lei moral no céu estrelado e as estrelas no coração do Homem.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Bandidos & Letrados - OLAVO DE CARVALHO


Bandidos & Letrados

Amigos sugerem-me que escreva alguma coisa sobre o caso do banqueiro-cineasta Moreira Salles, que se notabilizou menos como diretor de filmes do que como protetor do traficante Marcinho VP. Seria bom escrever, sim. Na verdade, já escrevi. Escrevi com cinco anos de antecedência, e o fiz não por ser dotado de especiais virtudes proféticas, mas por viver num país acachapantemente previsível. Sim, onde as pessoas não pensam, elas agem por reflexos condicionados, e com um pouquinho de observação o mais sonso aprendiz de Pavlov já fica sabendo tudo o que vão pensar, dizer, fazer e padecer até o último dia de suas vidas, se é que isso é vida. "Bandidos & Letrados" foi publicado no Jornal do Brasil em 26 de dezembro de 1994 (depois reproduzido em O Imbecil Coletivo, Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1997). O sr. Moreira Salles e Marcinho VP já estavam lá, sem os seus nomes, é certo, mas descritos com todos os detalhes da programação cibernética que molda os seus destinos padronizados. Na verdade, nunca me senti tão pouco profeta como ao constatar agora, pela milésima vez, que Aquilo Del Nisso. Aquilo sempre dá nisso. É um miserável e repetitivo samsara. Terei de escrever, agora, sobre aonde vai dar a gestão do sr. Luís Eduardo Soares no cargo de guru policial, sobre aonde vai dar o seu plano de armar os habitantes dos morros (alegadamente para que "se policiem a si mesmos") após ter desarmado os habitantes do resto da cidade? Ora! Vou exercitar meus dons proféticos onde pelo menos haja alguma surpresa. O Brasil não precisa de profetas. Precisa apenas de cidadãos capazes de admitir o peso do óbvio antes de ser esmagados por ele. Leiam e verão. -O. de C.

Entre as causas do banditismo carioca, há uma que todo o mundo conhece mas que jamais é mencionada, porque se tornou tabu: há sessenta anos os nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da malandragem, do vício e do crime. Como isto poderia deixar de contribuir, ao menos a longo prazo, para criar uma atmosfera favorável à propagação do banditismo?
De Capitães da Areia até a novela Guerra sem Fim, passando pelas obras de Amando Fontes, Marques Rebelo, João Antônio, Lêdo Ivo, pelo teatro de Nelson Rodrigues e Chico Buarque, pelos filmes de Roberto Farias, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Rogério Sganzerla e não-sei-mais-quantos, a palavra-de-ordem é uma só, repetida em coro de geração em geração: ladrões e assassinos são essencialmente bons ou pelo menos neutros, a polícia e as classes superiores a que ela serve são essencialmente más (1).
Não conheço um único bom livro brasileiro no qual a polícia tenha razão, no qual se exaltem as virtudes da classe média ordeira e pacata, no qual ladrões e assassinos sejam apresentados como homens piores do que os outros, sob qualquer aspecto que seja. Mesmo um artista superior como Graciliano Ramos não fugiu ao lugar-comum: Luís da Silva, emAngústia, o mais patológico e feio dos criminosos da nossa literatura, acaba sendo mais simpático do que sua vítima, o gordo, satisfeito e rico Julião Tavares — culpado do crime de ser gordo, satisfeito e rico. Na perspectiva de Graciliano, o único erro de Luís da Silva é seu isolamento, é agir por conta própria num acesso impotente de desespero pequeno-burguês: se ele tivesse enforcado todos os burgueses em vez de um só, seria um herói. O homicídio, em si, é justo: mau foi cometê-lo em pequena escala.
Humanizar a imagem do delinqüente, deformar, caricaturar até os limites do grotesco e da animalidade o cidadão de classe média e alta, ou mesmo o homem pobre quando religioso e cumpridor dos seus deveres — que neste caso aparece como conformista desprezível e virtual traidor da classe —, eis o mandamento que uma parcela significativa dos nossos artistas tem seguido fielmente, e a que um exército de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos dá discretamente, na retaguarda, um simulacro de respaldo "científico".
À luz da "ética" daí resultante, não existe mal no mundo senão a "moral conservadora". Que é um assalto, um estupro, um homicídio, perto da maldade satânica que se oculta no coração de um pai de família que, educando seus filhos no respeito à lei e à ordem, ajuda a manter o status quo? O banditismo é em suma, nessa cultura, ou o reflexo passivo e inocente de uma sociedade injusta, ou a expressão ativa de uma revolta popular fundamentalmente justa. Pouco importa que o homicídio e o assalto sejam atos intencionais, que a manutenção da ordem injusta não esteja nem de longe nos cálculos do pai de família e só resulte como somatória indesejada de milhões de ações e omissões automatizadas da massa anônima. A conexão universalmente admitida entre intenção e culpa está revogada entre nós por um atavismo marxista erigido em lei: pelo critério "ético" da nossa intelectualidade, um homem é menos culpado pelos seus atos pessoais que pelos da classe a que pertence (2). Isso falseia toda a escala de valores no julgamento dos crimes. Quando um habitante da favela comete um crime de morte, deve ser tratado com clemência, porque pertence à classe dos inocentes. Quando um diretor de empresa sonega impostos, deve ser punido com rigor, porque pertence à classe culpada. Os mesmos que pedem cadeia para deputados corruptos fazem campanha pela libertação do chefe do Comando Vermelho. Os mesmos que sempre se opuseram vigorosamente à pena de morte para autores de homicídios citam como exemplar a lei chinesa que manda fuzilar os corruptos, e repreendem o deputado Amaral Netto, um apologista da pena de morte para os assassinos, por ser contrário à mesma penalidade para os crimes de "colarinho branco". O Congresso, ocupado em castigar vulgares estelionatários de gabinete, mostra uma soberana indiferença ante o banditismo armado. Assim nossa opinião pública passa por uma reeducação, que terminará por persuadi-la de que desviar dinheiro do Estado é mais grave do que atentar contra a vida humana — princípio que, consagrado no Código Penal soviético, punia o homicídio com dez anos de cadeia, e com pena de morte os crimes contra a administração: dize-me quem imitas e eu te direi quem és (3).
Se levada mais fundo ainda, essa "revolução cultural" acabará por perverter todo o senso moral da população, instaurando a crença de que o dever de ser bom e justo incumbe primeira e essencialmente à sociedade, e só secundariamente aos indivíduos. Muitos intelectuais brasileiros tomam como um dogma infalível esse preceito monstruoso, que resulta em abolir todos os deveres da consciência moral individual até o dia em que seja finalmente instaurada sobre a Terra a "sociedade justa" — um ideal que, se não fosse utópico e fantasista em si, seria ao menos inviabilizado pela prática do mesmo preceito, tornando os homens cada vez mais injustos e maus quanto mais apostassem na futura sociedade justa e boa (4). Um dos maiores pensadores éticos do nosso século, o teólogo protestante Reinhold Niebuhr, mostrou que, ao longo da História, o padrão moral das sociedades — e principalmente dos Estados — foi sempre muito inferior ao dos indivíduos concretos. Uma sociedade, qualquer sociedade, pode permitir-se atos que num indivíduo seriam considerados imorais ou criminosos. Por isto mesmo, a essência do esforço moral, segundo Niebuhr, consiste em tentar ser justo numa sociedade injusta (5). Nossos intelectuais inverteram essa fórmula, dissolvendo todo o senso de responsabilidade pessoal na poção mágica da "responsabilidade social". Alguns consideram mesmo que isto é muito cristão, esquecendo que Cristo, se pensasse como eles, adiaria a cura dos leprosos, a multiplicação dos pães e o sacrifício do Calvário para depois do advento da "sociedade justa".
É absolutamente impossível que a disseminação de tantas idéias falsas não crie uma atmosfera propícia a fomentar o banditismo e a legitimar a omissão das autoridades. O governante eleito por um partido de esquerda, por exemplo, não tem como deixar de ficar paralisado por uma dupla lealdade, de um lado à ordem pública que professou defender, de outro à causa da revolução com a qual seu coração se comprometeu desde a juventude, e para a qual a desordem é uma condição imprescindível. A omissão quase cúmplice de um Brizola ou de um Nilo Batista — homens que não têm vocação para tomar parte ativa na produção cultural, mas que têm instrução bastante para não escapar da influência da cultura produzida — não é senão o reflexo de um conjunto de valores, ou contravalores, que a nossa classe letrada consagrou como leis, e que vêm moldando as cabeças dos brasileiros há muitas décadas. Se o apoio a medidas de força contra o crime vem sempre das camadas mais baixas, não é só porque são elas as primeiras vítimas dos criminosos, mas porque elas estão fora do raio de influência da cultura letrada. Da classe média para cima, a aquisição de cultura superior é identificada com a adesão aos preconceitos consagrados da intelligentzia nacional, entre os quais o ódio à polícia e a simpatia pelo banditismo.
Seria plausível supor que esses preconceitos surgiram como reação à ditadura militar. Mas, na verdade, são anteriores. A imagem do crime na nossa cultura compõe-se em última análise de um conjunto de cacoetes e lugares-comuns cuja origem primeira está na instrução transmitida pelo Cominternem 24 de abril de 1933 ao Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, para que procurasse assumir a liderança de quadrilhas de bandidos, imprimindo um caráter de "luta de classes" ao seu conflito com a lei (6).
A instrução foi atendida com presteza pela intelectualidade comunista, que produziu para esse propósito uma infinidade de livros, artigos, teses e discursos. Os escritores comunistas não eram muitos, mas eram os mais ativos: tomando de assalto os órgãos de representação dos intelectuais e artistas (7), elevaram sua voz acima de todas as outras e, logo, suas idéias prevaleceram ao ponto de ocupar todo o espaço mental do público letrado. Hoje vemos como foi profunda a marca deixada pela propaganda comunista na consciência dos nossos intelectuais: nenhum deles abre a boca sobre o problema da criminalidade carioca, que não seja para repetir os velhos lugares-comuns sobre a miséria, sobre os ricos malvados, e para lançar na "elite" a culpa por todos os assaltos, homicídios e estupros cometidos pelos habitantes das favelas.
Ninguém ousa por em dúvida a veracidade das premissas em que se assentam tais raciocínios — o que prova o quanto elas fizeram a cabeça da nossa intelectualidade, o quanto esta, sem mesmo saber a origem de suas idéias, continua repetindo e obedecendo, por mero automatismo, por mera preguiça mental, os chavões que o Comintern mandou espalhar na década de 30.
De nada adianta a experiência universal ensinar-nos que a conexão entre miséria e criminalidade é tênue e incerta; que há milhares de causas para o crime, que mesmo a prosperidade de um wellfare State não elimina; que entre essas causas está a anomia, a ausência de regras morais explícitas e comuns a toda a sociedade; que uma cultura de "subversão de todos os valores" e a glamurização do banditismo pela elite letrada ajudam a remover os últimos escrúpulos que ainda detêm milhares de jovens prestes a saltar no abismo da criminalidade. Contrariando as lições da História, da ciência e do bom senso, nossos intelectuais continuam presos à lenda que faz do criminoso o cobrador de uma dívida social. Alguns crêem mesmo nela, com uma espécie de masoquismo patético, resíduo de uma sentimentalidade doentia inoculada pelo discurso comunista nas almas frágeis dos "burgueses progressistas": o escritor Antônio Callado, vendo sua casa arrombada, levados seus quadros preciosos, repetia para si, entre inerme e atônito, a sentença de Proudhon: "A propriedade é um roubo". Deveria recitar, isto sim, o poema de Heine, em que um homem que dorme é atormentado em sonhos por uma figura que, ameaçando-o com uma arma, lhe diz: "Eu sou a ação dos teus pensamentos" (8).
Infelizmente, os pensamentos dos intelectuais não voltam só contra seus autores os seus efeitos materiais. Erigida em crença comum, a lenda do "Cobrador" — título de um conto aliás memorável de Rubem Fonseca — produz devastadoras conseqüências reais sobre toda a população. Ela transforma o delinqüente, de acusado, em acusador. Seguro de si, fortalecido em sua auto-estima pelas lisonjas da intelligentzia, o assassino então já não aponta contra nós apenas o cano de uma arma, mas o dedo da justiça; de uma estranha justiça, que lança sobre a vítima as culpas pelos erros de uma entidade abstrata — "o sistema", "a sociedade injusta" —, ao mesmo tempo que isenta o criminoso de quase toda a responsabilidade por seus atos pessoais. Perseguida de um lado pelas gangues de bandidos, acuada de outro pelo discurso dos letrados, a população cai no mais abjeto desfibramento moral e já não ousa expressar sua revolta. Qual uma mulher estuprada, envergonha-se de seus sofrimento e absorve em si as culpas de seu agressor. Ela pode ainda exigir providências da autoridade, mas o faz numa voz débil e sem convicção — e cerca seu pedido de tantas precauções, que a autoridade, após ouvi-la, mais temerá agir do que omitir-se. Afinal, é menos arriscado politicamente desagradar uma multidão de vítimas que gemem em segredo do que um punhado de intelectuais que vociferam em público.
Os intelectuais, neste país, são os primeiros a denunciar a imoralidade, os primeiros a subir ao palanque para discursar em nome da "ética". Mas a ética consiste basicamente em cada um responsabilizar-se por seus próprios atos. E nunca vi um intelectual brasileiro, muito menos um de esquerda, fazer um exame de consciência e perguntar-se: "Será que nós tambémnão temos colaborado para a tragédia carioca?"
Não, nenhum deles sente a menor dor na consciência ao ver que sessenta anos de apologia literária do crime de repente se materializaram nas ruas, que as imagens adquiriram vida, que as palavras viraram atos, que os personagens saltaram do palco para a realidade e estão roubando, matando, estuprando com a boa consciência de serem "heróis populares", de estarem "lutando contra a injustiça" com as técnicas de combate que aprenderam na Ilha Grande. Os intelectuais literalmente não sentem ter colaborado em nada para esse resultado. Não o sentem, porque décadas de falsa consciência alimentada pela retórica marxista os imunizaram contra quaisquer protestos da consciência moral. Eles possuem a arte dialética de sufocar a voz interior mediante argumentos de oportunidade histórica. Ademais, detestam o sentimento de culpa — que supõem ter sido inventado pela Igreja Católica para manter as massas sob rédea curta. Não desejando, portanto, assumir suas próprias culpas, exorcizam-nas projetando-as sobre os outros, e tornam-se, por uma sintomatologia histérica bem conhecida, acusadores públicos, porta-vozes de um moralismo ressentido e vingativo. Imbuídos da convicção dogmática de que a culpa é sempre dos outros, eles estão puros de coração e prontos para o cumprimento do dever. Qual dever? O único que conhecem, aquele que constitui, no seu entender, a missão precípua do intelectual: denunciar. Denunciar os outros, naturalmente. E aquele que denuncia, estando, por isto mesmo, ao lado das "forças progressistas", fica automaticamente isento de prestar satisfações à "moral abstrata" da burguesia, a qual, sem nada compreender da dialética histórica, continua a proclamar que há atos intrinsecamente maus, independentemente das condições sociais e políticas: "moral hipócrita", ante a qual —pfui! — o intelectual franze o nariz com a infinita superioridade de quem conhece a teleologia da história e já superou — ou melhor, aufhebt jetzt — na dialética do devir o falso conflito entre o bem e o mal...
Mas a colaboração desses senhores dialéticos para o crescimento da criminalidade no Rio foi bem mais longe do que a simples preparação psicológica por meio da literatura, do teatro e do cinema: foram exemplares da sua espécie que, no presídio da Ilha Grande, ensinaram aos futuros chefes do Comando Vermelho a estratégia e as táticas de guerrilha que o transformaram numa organização paramilitar, capaz de representar ameaça para a segurança nacional. Pouco importa que, ao fazerem isso, os militantes presos tivessem em vista a futura integração dos bandidos na estratégia revolucionária, ou que, agindo às tontas, simplesmente desejassem uma vingança suicida contra a ditadura que os derrotara: o que importa é que, ensinando guerrilha aos bandidos, agiram de maneira coerente com os ensinamentos de Marcuse e Hobsbawn — então muito influentes nas nossas esquerdas —, os quais, até mesmo contrariando o velho Marx, exaltavam o potencial revolucionário do Lumpenproletariat.
Nenhum desses servidores da História sente o menor remorso, a menor perturbação da consciência, ao ver que suas lições foram aprendidas, que suas teorias viraram prática, que sua ciência da revolução armou o braço que hoje aterroriza com assaltos e homicídios a população carioca. Não: eles nada fizeram senão acelerar a dialética histórica — e não existe mal senão em opor-se à História. Com a consciência mais limpa deste mundo, eles continuam a culpar os outros: o capitalismo, a política econômica do governo, a polícia, e a verberar como "reacionários" e "fascistas" os cidadãos, ricos e pobres, que querem ver os assassinos e traficantes na cadeia.
Mas os intelectuais da esquerda não se limitaram a criar o pano de fundo cultural propício e a elevar pelos ensinamentos técnicos o nível de periculosidade do banditismo; eles deram um passo além, e colheram os frutos políticos do longo namoro com a delinqüência: o apoio dos bicheiros — o que é o mesmo que dizer: dos traficantes — foi a principal base de sustentação popular sobre a qual se ergueu no Rio o império do brizolismo, a ala mais tradicional e populista da esquerda brasileira.
Sob a égide do brizolismo, as relações entre intelectualidade esquerdista e banditismo transformaram-se num descaradoaffaire amoroso, com a ABI dando respaldo à promoção do livro Um contra Mil, em que o quadrilheiro William Lima da Silva, o "Professor", líder do Comando Vermelho, faz a apologia do crime como reação legítima contra a "sociedade injusta".
Um pouco mais tarde, quando a criminalidade organizada já estava bem crescida a ponto de requerer uma intervenção do governo federal, o que se verificou foi que a esquerda não se limitara a colaborar com os bandidos, mas se ocupara também de debilitar seus perseguidores; que a CUT e o PT, infiltrando-se na Polícia Federal, haviam tornado esta organização mais ameaçadora para o governo federal do que para traficantes e quadrilheiros (9).
E finalmente, quando o governo federal, vencendo resistências prodigiosas, finalmente se decide a agir e incumbe o Exército de dirigir a repressão ao banditismo no Rio, a intelectualidade de esquerda, como não poderia deixar de ser, inicia uma campanha surda de desmoralização do comando militar das operações, seja com advertências alarmistas quanto à possibilidade de "abusos" contra os moradores das favelas, seja com toda sorte de gracejos e especulações sobre as fragilidades da estratégia adotada, seja com argumentações pseudocientíficas sobre a inconveniência do remédio adotado, dando a entender que os riscos de uma intervenção militar são infinitamente maiores que o da anarquia sangrenta instalada no Rio. Tudo isto prepara o terreno para uma investida maior, em que entidades autonomeadas representantes da "sociedade civil" — as mesmas que promoveram a elevação dos chefes do Comando Vermelho ao estatuto de "lideranças populares" — se unirão para pedir a retirada das Forças Armadas e a devolução dos morros a seus eternos governantes, lá entronizados pelas graças da deusa História (10).
Resumindo, pela ordem cronológica: a esquerda, primeiro, criou uma atmosfera de idealização do banditismo; segundo, ensinou aos criminosos as técnicas e a estratégia da guerrilha urbana; terceiro, defendeu abertamente o poder das quadrilhas, propondo sua legitimação como "lideranças populares"; quarto, enfraqueceu a Polícia Federal como órgão repressivo, fortalecendo-a, ao mesmo tempo, como instrumento de agitação; quinto, procurou boicotar psicologicamente a operação repressiva montada pelas Forças Armadas, tentando atrair para ela a antipatia popular. Não é humanamente concebível que tudo isso seja apenas uma sucessão de coincidências fortuitas. Se a continuidade perfeitamente lógica das iniciativas da esquerda em favor do banditismo não reflete a unidade de uma estratégia consciente, ela expressa ao menos a unanimidade de um estado de espírito, a fortíssima coesão de um nó de preconceitos contra a ordem pública e a favor da delinqüência. Para a nossa esquerda, decididamente, assassinos, ladrões, traficantes e estupradores estão alinhados com as "forças progressistas" e destinados a ser redimidos pela História pela sua colaboração à causa do socialismo. Quanto a seus perseguidores, identificam-se claramente com as "forças reacionárias" e irão direto para a lata de lixo da História. No que diz respeito às vítimas, enfim, pode-se lamentá-las, mas, como dizia tio Vladimir, quê fazer? Não se pode fritar uma omelette sem quebrar os ovos...
Para completar, é mais que sabido que artistas e intelectuais são um dos mais ricos mercados consumidores de tóxicos e que não desejam perder seus fornecedores: quando defendem a descriminalização dos tóxicos, advogam em causa própria. Mas eles não são apenas consumidores: são propagandistas. Quem tem um pouco de memória há de lembrar que neste país a moda das drogas, na década de 60, não começou nas classes baixas, mas nas universidades, nos grupos de teatro, nos círculos de psicólogos, rodeada do prestígio de um vício elegante e iluminador. Foi graças a esse embelezamento artificial empreendido pela intelligentzia que o consumo de drogas deixou de ser um hábito restrito a pequenos círculos de delinqüentes para se alastrar como metástases de um câncer por toda a sociedade: Si monumentum requires, circumspicii.
É de espantar que nessas condições o banditismo crescesse como cresceu? É de espantar que, enquanto a população maciçamente clama por uma intervenção da autoridade e aplaude agora a chegada dos fuzileiros aos morros, a intelectualidade procure depreciar a atuação do Exército e não se preocupe senão com a salvaguarda dos direitos civis dos eventuais suspeitos a serem detidos, como se a eliminação do banditismo armado não valesse o risco de alguns abusos esporádicos?
O que seria de espantar é que os estudos pretensamente científicos sobre as causas do banditismo jamais assinalem entre elas a cumplicidade dos intelectuais, como se os fatores econômicos agissem por si e como se a produção cultural não exercesse sobre a ordem ou desordem social a menor influência, mesmo quando essa cumplicidade passa das palavras à ação e se torna um respaldo político ostensivo para a ação dos quadrilheiros. Seria de espantar, digo, se não se soubesse quem são os autores de tais estudos e as entidades que os financiam.
Há décadas nossa intelligentzia vive de ficções que alimentam seus ódios e rancores e a impedem de enxergar a realidade. Ao mesmo tempo, ela queixa-se de seu isolamento e sonha com a utopia de um amplo auditório popular. Mas é a incultura do nosso povo que o protege da contaminação da burrice intelectualizada. "Incultura" é um modo de falar: será incultura, de fato, privar-se de consumir falsos valores e slogansmentirosos? Não: mas quando houver neste país uma intelectualidade à altura de sua missão, ela será ouvida e compreendida. Por enquanto, se queremos ver o nosso Rio livre do flagelo do banditismo, a primeira coisa a fazer é não dar ouvidos àqueles que, por terem colaborado ativamente para a disseminação desse mal, por mostrarem em seguida uma total incapacidade de arrepender-se de seu erro, e finalmente por terem o descaramento de ainda pretender posar de conselheiros e salvadores, perderam qualquer vestígio de autoridade e puseram à mostra a sua lamentável feiúra moral.

OLAVO DE CARVALHO

NOTAS
  1. Os rappers presos em São Paulo no dia 27 de novembro por incitação à violência cantavam: "Não confio na polícia, raça do caralho." É a culminação de seis décadas de cultura antipolicial, que teve outro momento memorável com "Chame o ladrão" de Chico Buarque. Mas depois que Gabriel o Pensador foi aplaudido pela intelligentzia ao expressar "artisticamente" seu desejo de matar um Presidente da República, que mais se pode esperar? Segundo o ex-procurador da República, Saulo Ramos, não há crime de incitação à violência "em obras artísticas". Mas será que faz sentido exigir bons serviços, honradez e patriotismo de uma classe profissional cuja detração constante e sistemática já foi incorporada à cultura nacional, sob a proteção do Estado? Não constituirá isso discriminação atentatória de um direito fundamental, numa clara violação do Art. 5º, § XLI da Constituição Federal? Se a letra do rap não tipifica o crime de incitação à violência, ela é uma clara apologia do preconceito. Por que não haverá crime em chamar de "raça do caralho" toda uma categoria profissional, se é crime usar o mesmo epíteto contra judeus ou negros? Será o elo racial mais sacrossanto ou digno de proteção oficial do que a comunidade de profissão, mesmo quando se trate de uma categoria de servidores do Estado? Outra coisa: qualquer porcaria posta em música é "obra artística"? Quem conhece a natureza antes publicitária e comercial do que artística de pelo menos oitenta por cento da música popular entende que o termo "arte" tem servido apenas como um salvo-conduto para a prática do crime. O povo, em todo caso, já julgou os rappers: apedrejou-os.
  2. A perda do senso da conexão entre intenção e culpa é um grave sintoma de patologia da personalidade. Não obstante, vi pela TV Record ( programa 25ª Hora de 28 de novembro ) a deputada Irede Cardoso defender a legalização do aborto sob o argumento de que, quando ocorrido por causas naturais, ele não é crime; sendo portanto, na opinião de S. Excia., uma odiosa discriminação puni-lo só quando é realizado por livre vontade da mulher ¾ um raciocínio que, embora S. Excia. não perceba, se aplica ipsis litteris à morte de modo geral. Considero realmente grave que haja pessoas dispostas a polemizar a sério com alguém capaz de dizer uma coisa dessas, que só pode ser respondida com uma forte dose de triperidol.
  3. Decorrido um ano desde a publicação deste artigo, vejo que ele inibiu um pouco a apologia do banditismo, mas não eliminou de todo os preconceitos em que ela se fundamenta. Numa entrevista nas páginas amarelas de Vejaem novembro de 1995, o delegado Hélio Luz, um sujeito que está a léguas de qualquer cumplicidade consciente com alguma coisa ilícita, cai numa escandalosa contradição ao descrever a situação presente do Rio de Janeiro, precisamente porque sua visão é distorcida pelo viés de um preconceito de classe. De um lado, ele afirma que o maior problema da polícia carioca é que os bandidos têm armas melhores e em maior quantidade que os policiais; de outro, que a prioridade no combate ao crime não é o confronto direto com as quadrilhas armadas, mas a investigação dos figurões, dos homens da classe alta que financiam o crime organizado. Ora, um sujeito com a cabeça cheia de intenções criminosas mas armado apenas de talão de cheques não representa senão um perigo virtual e de longo prazo: para efetivar suas intenções ele tem de contatar, recrutar, equipar e treinar um esquadrão de pés-de-chinelo, o que não se faz em dois dias, e, para complicar as coisas, tem de fazer tudo isso por vias indiretas, por interpostas pessoas, para manter oculta sua respeitável identidade. Quem está nas ruas assaltando e matando, quem representa o perigo imediato para a população, são pés-de-chinelo armados de granadas e metralhadoras, e não os colarinhos-brancos que os contrataram dez ou doze anos atrás. Em segundo lugar, é absolutamente impossível que quadrilhas a soldo de algum ricaço não tenham, depois de tanto tempo de exercício profissional, adquirido autonomia financeira para dispensar seus antigos patrões e operar por conta própria. Terceiro, se a polícia prende um colarinho-branco, os pés-de-chinelo que trabalhavam para ele vão imediatamente pedir emprego a outro empresário do crime — exatamente como os esbirros da Máfia trocavam de famiglia em caso de morte ou prisão do seu capo — ou então estabelecem-se por conta própria, de modo que, saneadas as classes altas, a vida do povão das ruas continuará um inferno. Há em todo o raciocínio do delegado Luz a típica confusão do homem de formação marxista entre causas e fatos, entre as raízes sociais do crime e o crime como tal. Baseado nessa confusão, ele crê que a missão precípua da autoridade é eliminar as causas remotas do crime, e não combater a criminalidade de facto. Ora, pergunto eu: se um cachorro feroz investe de dentes à mostra contra o delegado Luz, qual a reação que ele considera mais urgente nesse instante: dominar o cão ou multar o proprietário? E se as ruas estão infestadas de cães raivosos, que diremos de uma polícia que em vez de amarrá-los vai primeiro investigar quem são seus donos? O banditismo não é uma estrutura, uma instituição monárquica em que, cortada a cabeça, o corpo inteiro venha abaixo: é um ser caótico e proteiforme, capaz de reorganizar-se instantaneamente de milhões de maneiras diferentes, por milhões de artifícios imprevistos; logo, é utópico pretender liquidá-lo em bloco, atacando-se somente os centros de comando: ele tem de ser combatido no varejo, bandido por bandido, rua por rua, bala por bala. Aqui ocorre exatamente como em certas doenças que, uma vez instaladas, já não se pode atacar suas causas profundas antes de eliminar seus efeitos e sintomas mais imediatos e perigosos. O médico que, diante do doente diarréico por má alimentação, tratasse de remover primeiro as causas, alimentando o doente antes de suprimir o sintoma imediato, obteria um único resultado seguro: a morte do paciente. — De outro lado, é somente a demagogia mais estúpida que pode pretender eliminar o banditismo mediante passeatas e protestos, como se assaltantes e sequestradores fossem colarinhos-brancos ciosos de sua imagem respeitável. Tudo isso revela uma recusa obstinada de enfocar o problema do banditismo no plano em que ele se coloca — que é obviamente de ordem policial-militar — e um desejo obsessivo de encará-lo pelo viés político, um terreno onde nossa intelectualidade se sente mais segura mas que está longe daquele onde o problema reside.
  4. A maldade que se legitima sob a alegação de lutar por uma sociedade justa é a essência mesma da moral socialista. Quem quiser saber mais a respeito, leia Os Demônios de Dostoiévski, que descobriu a natureza dessa perversão quando ela estava ainda em germe.
  5. V. Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society. A Study in Ethics and Politics, New York, Scribner’s, 1960 ( 1st. ;ed., 1932 ).
  6. Cf. documento citado em William Waack, Camaradas. Nos Arquivos de Moscou. História Secreta da Revolução Brasileira de 1935, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, pp. 55-56.
  7. Um episódio célebre dessa epopéia teve como herói o poeta Carlos Drummond de Andrade, secretário do Congresso Nacional de Escritores, que teve de defender a pontapés as atas do encontro para que não fossem roubadas pelos comunistas interessados em falsificar o resultado das eleições para a ABDE.
  8. O escritor Antônio Callado, ao ler estas linhas, teve um acesso de cólera e escreveu ao JB protestando contra a publicação do meu artigo, no qual apontava três pecados infames: 1º, ser assinado por um ilustre desconhecido; 2º, errar na qualificação dos objetos roubados, que na verdade não eram quadros, mas instrumentos óticos sem grande valor; 3º, não entender o sentido irônico da citação de Proudhon. Saltando sobre a primeira acusação, que era tola demais, respondi que: 1º, os objetos roubados poderiam ter sido meias, ou tacos de bilhar, que não faria a menor diferença para o meu argumento; 2º, a ironia, se alguma houvera, fora antes involuntária. Callado, vendo desmascarada a ambiguidade de sua atitude ante a violência carioca, e não tendo o que opor aos meus argumentos, se apegara a detalhes bobos no intuito de me desmoralizar. — Passados alguns dias, a colunista Joyce Pascowitch, na Folha de S. Paulo, informava que, do alto de seu chateau-sur-mer numa praia baiana, Caetano Veloso estava "indignado" com minhas acusações à intelectualidade — como se espumar de raiva fosse uma refutação. O Globo, por sua vez, trazia uma declaração do antropólogo Gilberto Velho, que condenava sumariamente o meu artigo ( dispensando-se de alegar alguma razão para tanto, talvez por julgar que sua opinião é auto-probante ), e aproveitava para falar mal do meu livro Uma Filosofia Aristotélica da Cultura, que, surpreendentemente, admitia não ter lido. A completa irracionalidade destas três reações é a melhor comprovação de que a tese d’O Imbecil Coletivo, lamentavelmente, está certa: algo no cérebro nacional não vai bem.
  9. "A Polícia Federal perdeu todo o seu potencial de atuação. O contrabando liberou geral em todas as fronteiras. Milhares de inquéritos prescrevem nas delegacias da PF, por descaso e falta de pessoal, aumentando a impunidade." O quadro, delineado pelo Prof. Paulo Sérgio Pinheiro ( "Crime e Governabilidade", Jornal do Brasil, 14 nov. 1994 ) é perfeitamente exato. Mas, se o professor diz a verdade genérica, oculta a específica. A decadência da Polícia Federal coincide com a sua infiltração maciça por agentes do PT e da CUT, que transformaram esse órgão repressivo numa máquina de agitação incapaz de cumprir seus deveres legais mas capaz de intimidar o governo com greves, passeatas, badernas, ameaças e rojões disparados contra as vidraças dos ministérios. Armando a Polícia Federal contra as autoridades, a agitação petista desarma-a, ipso facto, contra o banditismo. Como não convém dizer isto, o professor acusa genericamente "o governo" por um descalabro policial do qual o governo é, na verdade, a vítima. Não é de hoje que a esquerda recorre ao expediente de provocar a desordem para em seguida acusar o governo de não manter a ordem.

    Jogar sobre "o governo" as culpas da esquerda parece ser de fato a estratégia mental do professor:

    "O crime organizado e as quadrilhas puderam assumir o controle de muitos espaços somente com o assentimento de vários escalões do poder público. Os governos estaduais não desarmam as quadrilhas porque não convém aos interesses de vários grupos incrustados dentro do aparelho de Estado ou em grupos sociais que lhes dão base política."

    O professor não esclarece que grupos são esses. O modo vago e impreciso de falar deixa no ar a impressão de referir-se a algo já sabido e pressuposto, a um lugar-comum. "Grupos incrustados no aparelho de Estado" é uma expressão que designa corriqueiramente os banqueiros, os senhores do capital, os empreiteiros, os políticos de direita que deram apoio à ditadura. Será destes que o professor está falando? Não pode ser. Não existe a menor notícia de uma ligação entre essa gente e os bandidos do morro. Mas os grupos que têm efetivamente essa ligação o professor não pode citar pelos nomes — pois são grupos de esquerda: são os ex-guerrilheiros e algumas velhas lideranças do tempo do janguismo, que após o exílio se refizeram na política com a ajuda dos bandidos e agora continuam "incrustados no aparelho de Estado". Acusar estes grupos não fica bem: seria dividir as forças da esquerda, coisa que um gentleman como o Prof. Pinheiro jamais se permitiria. Então ele prefere falar vagamente, de modo que, pela automática associação de idéias, a má impressão acabe indo para o lado da direita e da "elite" — que obviamente não inclui a intelligentzia.

    O professor não esconde seu intuito de desmoralizar o trabalho das Forças Armadas: "Libertemo-nos da fantasia de coreografias bélicas inúteis." E oferece, em lugar da fantasia, a solução real, "científica": "A participação das Forças Armadas deve ser submetida ao comando civil." Qual comando civil? O do governo estadual que, por omissão e cumplicidade, gerou o atual estado de coisas? Ou o governo federal que, determinando a intervenção das Forças Armadas, já está comandando o processo? Entre o absurdo e a redundância, a proposta do professor permanece indefinida. Indefinida, mas nem tanto. Linhas adiante ele finalmente abre o jogo: "No Rio de Janeiro é impensável pensar em realizar alguma iniciativa consistente sem a participação das entidades que compõem o Viva Rio." Eis aí o segredo: o comando da luta contra o crime não pode ficar com as Forças Armadas nem com os governantes civis eleitos, estaduais ou federais: tem de ser transferido para as entidades autonomeadas "representantes da sociedade civil" — isto é, em última análise, para a intelligentzia esquerdista. Meu Deus, será que neste país todo mundo só discursa pro domo sua? A mentalidade atávica, que mais teme a hipótese superada do militarismo do que a ameaça real e presente da delinqüência armada, acaba reinterpretando a situação de acordo com a ótica dos interesses de seu próprio grupo, tomados como mais urgentes e importantes do que as necessidades da população: em vez de ajudar na luta de um povo contra o banditismo, vamos desviar nossas energias para o velho conflito entre a intelligentzia e os militares — um episódio já encerrado da História, que o prof. Pinheiro pretende ressuscitar em prejuízo das tarefas de hoje. Olhando o presente com os olhos do passado, ele mostra que está menos interessado na luta contra o crime do que em assegurar, nela, um posto de comando para a casta a que pertence, que ele pressupõe ser mais confiável do que as Forças Armadas ou do que o governo federal eleito. A intelligentzia é a mais corporativista das corporações.
  10. Foi isto realmente o que acabou por acontecer, poucos meses após a publicação deste artigo no Jornal do Brasil.

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(Apêndice de A Nova Era e a Revolução Cultural)